terça-feira, 13 de julho de 2010

Sócios do mal

Por Celso Vicenzi

Diante da violência do outro, não somos tão inocentes quanto imaginamos. Atos brutais produzidos com frequência – e não como exceção –, têm na sociedade, uma parcela da explicação. Quando mulheres são espancadas, violentadas ou mortas, diariamente, com maior ou menor grau de crueldade, não basta apontar o dedo para o agressor. Para não ir muito longe: quando uma mulher é espancada, violentada ou morta, qual a responsabilidade da mídia, por exemplo, na construção da mulher como um simples objeto do desejo masculino? Há muitos fatores que contribuem para desencadear um fenômeno social. Não basta olhar o sintoma, é preciso ir fundo às causas. Por isso, diante de todos os tipos de violência que se produz no Brasil, poucos podem se declarar inocentes. Na maioria dos casos, por uma série de atitudes no cotidiano, ou há cumplicidade ou há omissão.

Será que é tão difícil reconhecer que nem sempre somos tão éticos como desejaríamos? Melhor do que negar é admitir – primeiro passo para se tornar um cidadão melhor.

Quantos não tomam, cotidianamente, decisões em causa própria e em prejuízo à sociedade? Quantos pais, quantas famílias, só se preocupam com os seus filhos, mas pouco se interessam sobre as outras crianças do bairro ou da favela a poucos metros do edifício classe média ou de luxo onde residem? E quando votamos, nosso voto é para mudar a situação de desigualdade da maioria do povo brasileiro ou é para manter a situação como está e que nos privilegia?

Milhares de exemplos parecem confirmar: não, ninguém é totalmente inocente.

As autoridades policiais e judiciais, a mídia, estão em frenesi com o caso do goleiro Bruno, que ao que tudo indica, foi o mandante de um crime bárbaro. O que boa parte da população tenta entender é como alguém que chega ao topo do sucesso, tem fama, dinheiro e poder, põe tudo a perder, num ato de tamanha desumanidade? De tanta covardia?

Novamente, permita-me esquivar de explicações mais complexas. Num primeiro momento, basta observar um dado que tem sido preponderante na sociedade brasileira: a quase certeza da impunidade. Crimes de todos os tipos, por piores que sejam, quando praticados por alguém com poder, recebem do cidadão brasileiro o descrédito pela aplicação das leis: “não vai dar em nada”, repetem aqui e acolá. Num país em que a corrupção é um dos crimes mais comuns, as cadeias e penitenciárias abrigam, majoritariamente, pretos e pobres. O jornalista Antônio Marcos Pimenta Neves, diretor de redação de um dos maiores jornais do país, assassino confesso da ex-namorada Sandra Gomide, condenado a 19 anos de prisão, cumpre a pena em liberdade. Permaneceu apenas sete meses detido. É o retrato da nossa justiça de classes. Tem dinheiro? Tem bons advogados? Dificilmente cumprirá pena de prisão.

Criminosos comuns também sabem que dificilmente serão presos. E se presos, não passarão muito tempo atrás das grades. Pela falência do sistema carcerário brasileiro, que é também a falência do Judiciário e da autoridade policial.

Num país onde, não raro, são os criminosos que impõem a lei – a lei do mais forte – Bruno foi induzido a acreditar que, de fato, quem tem dinheiro e poder, tudo pode. Ameaçou Eliza Samudio: “Cuidado que eu posso te matar e dar um sumiço no teu corpo”, teria dito. Simples assim.

Os fatos narrados até o momento, sobre a execução dessa moça e o comportamento do goleiro Bruno, são repugnantes.

Se a muitos é inacreditável constatar a que ponto pode chegar uma pessoa ao matar e despedaçar um corpo humano, como se estivesse num açougue macabro, mais difícil é compreender a inexistência de culpa. Bruno só parece lamentar o que deu errado e não o ato em si. Teria bebido cerveja com o executor e cúmplices, após o fato consumado. “Esta não incomoda mais”, teria dito. “Esta” era mãe de um filho seu e que, pelos relatos, parece só ter sido poupado no último momento.

Sequestro, morte, mutilação e desaparecimento do corpo. Tudo pensado e planejado friamente.

Quando se mata – e se mata muito no Brasil – por motivos banais, por um par de tênis, um relógio, um celular, uma dívida no tráfico, uma separação conjugal, é porque há uma quase certeza na impunidade.

Entre 1997 e 2007, 41.532 mulheres foram assassinadas no país, o que resultou numa média macabra de 10 brasileiras mortas por dia. Muitas delas pediram proteção ao Estado brasileiro. Inutilmente.

Motivos fúteis são a causa de aproximadamente 50% desses crimes. Segundo a pesquisadora Wânia Izumino, do Núcleo de Estudo da Violência da Universidade de São Paulo (USP), os assassinos costumam ser maridos ou ex-maridos, namorados ou companheiros inconformados em perder o poder sobre uma relação que acreditavam controlar.

Bruno achou que por ter dinheiro e poder, tudo se resolveria sem consequências. Não estava totalmente errado. Afinal, quantos crimes são punidos no Brasil? A polícia brasileira é uma das que mais mata, segundo a Anistia Internacional. Não raro, são execuções. Raríssimas são as condenações. Quando a lei não impõe limites aos abusos, é quase um estímulo para delinquir, para matar. Todos vão embrutecendo. Quando a sociedade não revê os valores sobre os quais estabelece as relações sociais, quando as injustiças estão normatizadas em lei, quando o Estado se omite diante de todos os tipos de misérias que a pobreza e a falta de oportunidades geram, abre-se um enorme campo para manifestações de violência.

E quando se chega a este ponto, mais do que uma sociedade, estamos nos parecendo, cada vez mais, com uma monstruosidade.


* Jornalista, Ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de SC, um grande amigo.

Fonte: http://www.acontecendoaqui.com.br/

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